Como diferenças culturais inspiram intérpretes

Culturas diferentes são sempre uma fonte de inspiração para os intérpretes e tradutores.

As pessoas sempre me perguntam qual foi o livro mais difícil que traduzi. E, embora nenhum deles tenha sido particularmente fácil, um sempre me vem à cabeça: O filho eterno, do curitibano Cristovão Tezza.

Não achei difícil de ler. Aliás, li num golpe só, deslumbrada com a honestidade do autor ao lidar com um assunto extremamente delicado sem apelar para o sentimentalismo. Tanto que fui eu que sugeri o título The Eternal Son para a editora australiana que acabou comprando os direitos. O livro tinha me fisgado. Mas, por incrível que pareça, não atentei para a dificuldade da tradução. Simplesmente desliguei a tradutora interna, para ser apenas leitora e fã, e me esqueci da gramática…

Quer dizer, havia me deparado com o mais óbvio alguns meses antes, quando traduzi um capítulo para o site Words Without Borders: os tempos verbais. Tezza mistura tempos verbais do passado (pretérito perfeito, pretérito imperfeito, pretérito mais-que-perfeito) com o presente histórico, o que é bastante comum em português. É um recurso interessante. Permite que o autor conte uma história no passado, mas empregando de vez em quando um tempo verbal que parece aguçar a ação, dando a impressão de que é mais imediata, mais na nossa frente. E, o mais interessante, para mim, é que o leitor brasileiro não estranha nada – todo mundo entende que a história é no passado, e ponto.

Como diferenças culturais inspiram intérpretes…

Via de regra, não fazemos isso no inglês. Passado é passado e presente é presente. Isto é, por alguma razão que nunca entendi, fazemos isso em alguns documentários históricos, mas jamais por escrito. Creio eu. Para testar minha teoria (adoro desenvolver teorias, mas também gosto de testá-las para ter certeza de que não são apenas coisas da minha cabeça), fiz um rascunho da tradução e mandei para três amigas, número ímpar, para desempatar caso houvesse discórdia, perguntando se alguma coisa no texto as incomodava. Sim, responderam, que salada de tempos verbais é essa? Pronto. Teoria comprovada empiricamente por três amigas.

Fiz mais duas versões, uma completamente no presente e outra no passado, sem misturar. Mandei para as três de novo perguntando qual preferiam. A resposta foi unânime, a versão no passado – achavam que tudo no presente ficava cansativo depois de um tempo. Também achava, portanto me senti justificada em deixar no passado. Que havia ali uma pequena perda, havia, mas fazer o quê? Não sou muito de ficar lamentando o impossível. Bola pra frente.

Mas isso não foi nada. Foi só meses depois, quando comecei a tradução para valer, que me dei conta do outro problema, infinitamente maior e pior: a sintaxe do Tezza. A sintaxe dele é altamente idiossincrática e – por alguma razão que não entendia na época, mas para a qual hoje tenho uma teoria – completamente anti-inglês. Enquanto alguns textos parecem ter nascido para a tradução, outros resistem a qualquer tentativa. As frases do Tezza são longas e cheias de informações. E ele adora um aparte. E um aparte do aparte. E, às vezes – por que não? – um aparte do aparte do aparte. De repente, aquelas frases que eu tinha lido com tanto deleite, quando era apenas leitora e fã, viraram um labirinto em que tropeçava e me perdia. Ficavam estranhas no inglês. Respirei fundo e tentei, ao máximo possível, fazer uma tradução fiel à sintaxe dele – não tão presa ao português que perdesse a naturalidade no inglês, mas preservando as frases compridas, os apartes, o jeito espontâneo de emendar várias idéias numa frase só. E, com certa desconfiança, mandei para a editora.

Em determinado momento o editor me mandou o manuscrito de volta, desabafando: “A maior parte do tempo não sei o que o autor está dizendo. O sentido me escorre pelas mãos.” E foi assim que comecei o longo trabalho de revisão, fazendo o meio de campo entre autor, editor e eu mesma. O Tezza, uma alma sensível, percebeu o que estava acontecendo e se entristeceu. Recebi um email dele pedindo: “Me defenda, por favor!” E era o que eu queria fazer, tanto que tinha procurado preservar a sintaxe dele na primeira versão. Mas eu também entendia o editor, que parecia ter confirmado algo que eu vinha desconfiando ao longo do processo, sem conseguir articular muito bem: alguma coisa importante se perdia nessa tradução tão fiel à sintaxe do original… Mas o quê, exatamente?

Vamos deixar a tradução de lado por alguns instantes. Agora é conversa de bar. Literalmente. Quando eu cheguei ao Brasil, há quase duas décadas, e saía com os amigos, ficava impressionada com a maneira das pessoas conversarem. Não conseguia entender as regras. Lembro de ficar de frente para um casal, numa mesa de bar, os dois falando comigo simultaneamente, contando a mesma história. Ou uma história diferente, não tenho certeza. Um falando sem parar, me olhando nos olhos, como se o outro não estivesse falando ao mesmo tempo e competindo pelo meu olhar a 30 centímetros de distância. E não pareciam se irritar um com o outro. Eu não sabia para onde olhar, quem escutar, em qual história prestar atenção. Acabava olhando de um para o outro que nem uma boba e entendendo lhufas.

Também ficava maravilhada com as conversas em grupo, em que as pessoas pareciam se cortar alegremente sem a menor preocupação com a história que o outro ainda não tinha terminado de contar. E o mais inacreditável, do meu ponto de vista, era que depois que a segunda – ou terceira, ou até quarta – pessoa tinha cortado a conversa, a pessoa que estava falando no começo retomava a sua história e terminava. Eu teria me perdido por completo. Esse caos me fascinava mais que as conversas em si. No meu país, as pessoas esperam a sua vez para falar. Quando uma termina a outra começa, e se alguém atravessar a conversa do outro antes da hora, pede-se muitas desculpas. Aqui no Brasil, perdi conta do número de vezes que fiquei esperando a minha vez, que não chegava nunca. Um dia, fiquei impaciente e resolvi sair cortando as pessoas também, já que, a meu ver, todo mundo cortava todo mundo. Mas logo percebi que não era bem assim. Aquilo que parece tão espontâneo tem todo um timing, e se você não acerta, passa por estúpido. Passei por estúpida. Quando eu cortava alguém, todo mundo parava de falar na mesma hora e ficava me olhando, a gringa mal-educada. Foi só depois de muitos anos de conversa de bar que adquiri esse timing (meus amigos que me corrijam se estiver enganada) e a capacidade de lembrar o que estava falando e voltar a terminar minha história depois de cinco ou dez minutos de conversas paralelas.

Teoria de bar da Alison: vocês, brasileiros, têm mais sinapses na região do cérebro que guarda informações durante conversas. Não digo que nascem com esse dom, mas sem dúvida o adquirem com o passar dos anos, desde pequeninos. E nós, falantes da língua inglesa, por termos outras regras de conduta, não desenvolvemos esta capacidade sináptica.

Estou brincando, mas não muito.

E não é só nas conversas de bar. Acontece na literatura também. Por infinitas questões culturais, a literatura de língua portuguesa tende a ser mais prolixa. As frases são maiores e mais complexas, com mais orações. É claro que existem exceções à regra, mas são exceções. E, por extensão da minha teoria de bar, cheguei à conclusão de que vocês, brasileiros, também têm mais sinapses na região do cérebro que guarda informações do começo de uma frase que vão ganhar complemento lá no pé da página, quando nós, da língua inglesa, já estamos boiando… Não é uma questão de inteligência, mas de prática, de usos e costumes. E a estética das literaturas – o que é considerado bom estilo em determinado país – anda de mão dada com esses usos e costumes.

Voltemos para o Tezza. Em algum momento do processo, subi na corda bamba e procurei achar um meio termo, ainda tentando preservar ao máximo a sintaxe e voz particulares do Tezza, mas fazendo algumas concessões para o leitor de língua inglesa, que simplesmente não tem a bagagem para navegar aquelas frases tão brasileiras. Não fiz 100% do que o editor queria, nem 100% do que o autor queria. Apostei no instinto e comecei a brigar pelo livro. E, no final das contas, acho que consegui recriar uma experiência de leitura parecida, embora, se alguém colocar tradução e original lado a lado, talvez ache que eu tenha facilitado um pouco o texto. Depende do ponto de vista. Tenho cá comigo que as pequenas modificações que fiz foram totalmente justificáveis, para garantir que o leitor da tradução não se perca, que continue lendo, porque o livro merece.

O esforço todo valeu a pena. O livro foi bem recebido pela crítica, o editor ficou contente, Tezza também (e espero que não tenha ficado muito traumatizado), e eu fiquei com uma teoria a mais para minha coleção.

 

The Eternal Son é publicado pela Scribe Publications na Austrália e no Reino Unido, e pela Tagus Press nos E.U.A. Em 2012, foi finalista no International IMPAC Dublin Literary Award.

como diferenças culturais inspiram intérpretesAlison Entrekin é tradutora literária australiana radicada no Brasil. Verteu para o inglês Cidade de Deus, do Paulo Lins, O filho eterno, do Cristovão Tezza, Perto do coração selvagem, da Clarice Lispector e Budapeste, do Chico Buarque, entre outros.